Não há absolutamente nada normal no que está acontecendo. Você tem que ser muito estúpido, louco ou mal-humorado para pensar que temos mais a ver com tocar a vida. Só a mais completa estupidez ou desonestidade explica que o presidente supremo de um país do século 21 não puxa os cabelos antes da morte de 100.000 pessoas nos cinco meses desde uma doença contagiosa.
Mesmo em uma nação tão desigual e ignorante como a nossa, já deveria estar bem claro que algo fora da escala normal das coisas está acontecendo. A gripe espanhola, a pior pandemia em séculos, matou 35.000 pessoas no Brasil (quase certamente subestimada, mas ainda eloquente). Em 20 anos, de 1982 a 2002, a AIDS ceifou a vida de cerca de 150.000 brasileiros. Como é perfeitamente concebível atingirmos esse número teatral no início de 2022, só posso concluir que alguém está tentando justificar o slogan da campanha na linha 20 anos em um.
Não é apenas quantitativo. Também estamos experimentando uma imersão qualitativa no abismo. Um dos maiores triunfos da ciência médica em grande parte do mundo foi transformar o espectro primordial das doenças infecciosas em algo que, na grande maioria dos casos, não precisamos mais temer. Vacinas, antibióticos e métodos de prevenção eficazes têm causado morte por tuberculose, sarampo ou infecção na garganta de animais mais que uma regra, como era no início do século 20, para se tornar uma exceção em qualquer lugar com qualquer outro sistema de saúde (e menos cérebro para ser continuar a vacinar crianças em massa).
Graças a essa revolução científica e médica, é “normal” hoje morrer na velhice e gradativamente, principalmente de doenças cardiovasculares e câncer, que são as principais causas de morte no Brasil hoje. Mas a Covid-19 já está em terceiro lugar. Novamente: pelo menos um século se passou desde que uma doença contagiosa se instalou no país.
Obviamente, parte desse relato deve ser atribuída ao fato de que Sars-CoV-2 tinha acabado de ser transferido de animais para humanos e, portanto, ninguém estava imune a ele. Também é óbvio que a população brasileira é grande, o que explica em parte o número de mortes. “Ah, mas você tem que ver as mortes por milhão de habitantes”, diz o cara esperto.
Mas é justamente o fato de ninguém ter ficado imune ao vírus e de muita gente no Brasil ainda não ter tido contato com ele, que mostra como é loucura não ter uma estratégia clara, coordenada nacionalmente e mais forte contra a doença, ideias de jerico e declarações que minimizem o problema , apostas em quimeras farmacêuticas, máscaras para barba e caronas na Suprema Corte – tudo custou vidas. E ainda custará dezenas de milhares, na melhor das hipóteses. E então até mesmo a desculpa desagradável de “morte por milhão de habitantes” falhará.
Um velho ladrão disse uma vez que se a morte é uma tragédia, um milhão de mortes é apenas uma estatística. Isso acontece, porém, quando toleramos esse tipo de raciocínio. E o primeiro passo para evitar que a tragédia se torne uma farsa é nunca esquecer.