Observando atentamente o DNA dos brasileiros, podemos encontrar indícios da chegada de colonizadores e imigrantes, da chegada forçada de africanos ao Novo Mundo, encontros com indígenas isolados e também indícios da violência que fez parte da formação do país.
Esse conhecimento se acumulou nos últimos anos a partir do trabalho de grandes nomes da genética nacional como Francisco Salzano (1928-2018) e Sérgio Pena, mas recentemente ganhou importância com a publicação dos resultados do projeto DNA to Brasil, publicado em primeira mão Folha.
Entre os mais de mil genomas sequenciados e analisados até agora, a contribuição europeia foi encontrada em 75% dos cromossomos Y (ou seja, herança masculina), enquanto no DNA das mitocôndrias, organelas celulares herdadas apenas da mãe, a contribuição africana foi de 36% e a indígena 34%.
Ou seja, para encerrar essa conta, as transições só poderiam ser assimétricas. Eles concordaram com muitos homens de ascendência europeia e muitas mulheres de ascendência indígena e africana.
Os motivos principais são dois: a muito reduzida presença de mulheres de ascendência europeia no processo de ocupação e exploração do Brasil colonial, especialmente nos primeiros 300 anos, e a violência que permeou as relações entre povos de diferentes origens desde o descobrimento do país.
Como uma população inicialmente de apenas 5% dos europeus acaba gerando 75% da herança masculina?
“Nenhuma explicação biológica para fenômenos que ocorrem em outras espécies é crível para descrever isso”, diz Tabita Hünemeier, professora da USP e integrante do projeto DNA to Brasil. “É estranho que ainda hoje haja gente que não saiba que o Brasil teve um passado violento. Como 90% da população local morreu? Como milhões de escravos chegaram aqui? “
Hünemeier, orientado por Salzano para seu doutorado, é um estudante do genoma da população indígena.
Segundo ela, um dos resultados mais interessantes das pesquisas recentes é que, apesar da extinção de muitos desses grupos, esses traços estão cada vez mais sendo identificados no DNA da população que hoje habita o Brasil.
A história da família da técnica contábil e alfaiate Carmen Inazer Bento (86) ilustra a diversidade da formação do povo brasileiro e como o passado pode permanecer marcado em nosso DNA, apesar de seu surgimento.
Sua avó materna, Índia, foi levada ainda criança para morar em uma casa de família branca, onde trabalhava como empregada doméstica. Eles o chamavam de Lydia.
Eduardo, um contador (contador) português, que chegou ao país em 1901, recebeu autorização da família para se casar com ela. Juntos, eles tiveram Caroline, a mãe de Carmen.
O pai de Carmen era Joaquim, filho de negros mineiros que viviam no fim da escravidão no Brasil. “Meu pai não gostava de falar sobre isso, mas meu avô morreu bêbado, debaixo de um cafeeiro”, diz Carmen com sensibilidade.
O encontro de Caroline e Joaquim, o cocheiro que sempre viajava, aconteceu no interior de São Paulo. O casal viveu entre Lins e Serre Negra, e além de Carmen teve outros dois filhos, Wilson e Maria Inês.
Carmen se casou com Wilson Bent, um homem negro, e teve quatro filhos: Cláudia, Cleide, Ariovald e Alexandre.
Curiosamente, o irmão de Carmen se casou com uma mulher branca, e seus filhos são, pelo menos fenotipicamente (ou seja, na aparência), brancos.
Isso significa que na mesma geração, a família possui pessoas com diferentes tons de pele, apesar de compartilharem boa parte de seu DNA ancestral, negro e europeu, e até indígena, herdado de Lydia.
É muito provável que muitos de nós, sem saber, carreguem um punhado desse genoma indígena, e é isso que fascina Hünemeier.
“Uma coisa é estudar as origens de São Paulo, outra é ocupar a Amazônia. O processo histórico é diferente em cada região. Durante o estudo do DNA, temos dados reais, porque muitas vezes não há registros históricos, e é possível entender quem são esses grupos ”, afirma o cientista. “Hoje, a diversidade da população indígena é muito menor do que a de um século atrás, mas ainda pode ser encontrada no genoma de quem vive nessas regiões”.
As costas da atual população indígena possuem espécimes de 18 cepas diferentes.
Ao analisar apenas os primeiros genomas do novo projeto, já foi possível encontrar 38 misturados ao DNA da população em geral, diz a pesquisadora.
O objetivo agora é usar ferramentas computacionais que possam analisar uma pilha de dados de DNA antigos e modernos para descobrir a população e entender quem contribuiu para a formação do povo brasileiro, mesmo quando esses encontros aconteceram.
Lygia Pereira, professora da USP que trabalha com Hünemeier no DNA brasileiro, além de recuperar dados de povos extintos via genoma (apesar da pequena quantidade de cromossomos Y), terá interesse em ver se um pedaço dessa herança indígena existe com mais frequência do que o esperado em aos genomas de hoje.
Isso seria o que os cientistas chamam de seleção positiva: um gene pode criar tal vantagem para um indivíduo que é mais provável que deixe descendentes, perpetuando (reparando) esse gene em uma população.
“É uma mistura de história, antropologia, mas também tem muita biologia e saúde humana. Há um número incrível de variantes que encontramos apenas nos primeiros mil genomas estudados ”, diz Pereira. “Tudo o que esperávamos já foi confirmado nesta pequena análise, mas ainda temos muito que aprender.”