“Atenção da população haitiana: o governo da cidade está pedindo a todos que têm sintomas de gripe que liguem para sua unidade de saúde”.
Traduzida para o crioulo francês e haitiano, a mensagem é transmitida por carros sonoros na cidade de Xaxim, no oeste de Santa Catarina. A idéia é atingir uma parcela de 4.000 estrangeiros, a maioria haitianos, vivendo em uma cidade de 28.000.
A maioria dos imigrantes que vivem nesta parte do país tem um objetivo: economizar dinheiro para enviar para suas famílias. A maneira, para muitos deles, é trabalhar em matadouros – que em vários países se tornaram o epicentro da epidemia de sofrimento-19 e contribuíram para a disseminação da doença no interior do país.
O ambiente frio e úmido e o barulho das máquinas, o que força aqueles que querem que seus colegas os ouçam mais alto, são propícios à propagação da nova coronavírus nesses ambientes. Tanto que, além do Brasil, países como Estados Unidos, Alemanha, Grã-Bretanha, França e Espanha enfrentaram problemas semelhantes.
A questão dos estrangeiros é sensível e atrai a atenção das autoridades, afirma a promotora do MPT (Ministério Público do Trabalho) em Chapecó Mariana Casagranda, porque, além de não falarem o idioma, muitos deles vivem em grupos, tentando economizar recursos sob o mesmo teto – o que também ajuda a espalhar o vírus.
Santa Catarina possui 3.132 diagnósticos positivos de covid-19 entre trabalhadores de 31 matadouros, segundo dados da advogada Priscilla Dibi Schvarcz, que coordena o Projeto de Adequação das Condições de Trabalho nos matadouros do MPT.
Até o momento, foram relatadas 50 hospitalizações e duas mortes – um caso de um haitiano de 48 anos que vive em Xaxim.
Nos três estados do sul do país, onde cerca de metade dos 500.000 trabalhadores de matadouros no Brasil estão concentrados, 11.500 casos já foram confirmados em 104 fábricas, segundo dados compilados pelo MPT.
Os dados coletados do Ministério da Saúde por meio do eSUS não informam o local de trabalho dos pacientes, o que dificulta a escala dos problemas no país como um todo, diz Schvarcz.
Ainda, acrescenta, houve epidemias, além daquelas no Rio Grande do Sul, no oeste do Paraná e Santa Catarina, no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás e Rondônia.
O setor em que os imigrantes são mais empregados
O Brasil hoje é um país com poucos imigrantes proporcionalmente. Portanto, a presença de estrangeiros no mercado de trabalho é pequena.
Dados da Rais (Lista Anual de Informações Sociais) mostram, no entanto, que o setor de matadouros é o que mais emprega esse grupo.
Os dados mais recentes relativos a 2018 consistiram em 15.700 trabalhadores de nacionalidade além de brasileiros no grupo “abate e produção de produtos à base de carne”, primeiro lugar entre 276 setores.
O valor representa 10,5% do total registrado no cadastro – 149,7 mil estrangeiros por contrato oficial. Eles são seguidos por “restaurantes e outros serviços de comida e bebida”, com 9,7 mil.
Os haitianos são a grande maioria dos imigrantes que trabalham no setor: 11.200 dos 15.700.
A seção “outros africanos” possui o segundo maior número em Rais, 1.099 (muitos trabalhadores de países muçulmanos africanos vêm ao Brasil em busca de trabalho na produção de carne halal, cujo abate segue as regulamentações islâmicas), seguido pelos paraguaios (679) e “outros latinos “662)
Regina Dal Castel Pinheiro, chefe de assistência médica da DIVS / SUV / SES, vinculada à vigilância sanitária em Santa Catarina, diz que sua equipe visitou quatro casas haitianas em Concórdia para verificar a condição dos trabalhadores,
O principal problema, diz ele, é o fato de que muitos compartilham a mesma casa e que o ambiente geralmente não possui condições higiênicas adequadas.
“Conversamos com as secretarias de assistência social e pedimos que orientassem e envolvessem essas pessoas nos programas sociais disponíveis, pois muitos vivem em uma situação de vulnerabilidade social”, diz ela.
O fato de os refrigeradores serem propícios à disseminação do coronavírus é apenas parte do problema.
Segundo ela, algumas empresas relutam em adotar medidas recomendadas para evitar infecções nas fábricas: vigilância ativa para detectar novos casos no início e no isolamento, maior distância dos trabalhadores da linha de produção, adequação dos turnos de entrada e saída para evitar aglomerações e grandes distanciando os trabalhadores dos transportes que os transportam e trazendo-os das cidades vizinhas.
Em seis rodadas de inspeção no país, foram emitidas 14 intimações judiciais e 14 notificações de contravenção.
Em unidades com um grande número de pessoas infectadas, a vigilância exigia questionamentos em massa dos funcionários. Em um dos 4.899 trabalhadores testados, o diagnóstico de covid-19 foi positivo para 1.219. “A grande maioria era assintomática”, diz Pinheiro.
A advogada trabalhista Priscilla Schvarcz faz uma avaliação semelhante. Ela ressalta que, desde o início da pandemia, muitas empresas vêm tentando implementar as medidas adequadamente e mantêm um bom diálogo com o MPT.
Outros, no entanto, preferem o que os promotores chamam de “medidas fotográficas”, mas que são ineficazes.
O MPT já foi a tribunal para pedir a proibição de pelo menos 11 unidades em seis estados.
No final do dia, ela acrescentou, o próprio setor está causando danos: a China suspendeu as importações de seis matadouros brasileiros desde junho, devido à propagação acelerada da covid-19 nesses ambientes.
Procurada, a ABPA (Associação Brasileira de Proteínas Animais), que faz parte de empresas do setor, disse que seus membros adotaram ações de precaução antes mesmo da quarentena ser implementada em várias cidades do país e que seus protocolos setoriais foram cientificamente validados pelo Hospital Albert Einstein,
Dentre as medidas de proteção, destacam-se o uso de máscara cirúrgica e face pelos funcionários e a instalação de barreiras laterais nas linhas de produção, impedindo o contato entre os trabalhadores, além dos uniformes habituais, luvas, máscaras e outras camadas de proteção e EPI.
Geladeiras e interiorização covid-19
Além de expor a vulnerabilidade dos trabalhadores imigrantes, as epidemias nos matadouros também contribuíram para a disseminação do Formulário 19 no interior.
Isso é indicado por um estudo realizado pelo técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Ernesto Pereira Galindo.
Usando dados do Censo, Rais e Caged (Registro Geral de Empregados e Desempregados), Galindo coletou informações sobre o município de moradia e trabalho dos funcionários do setor – que geralmente são diferentes – e riscou as informações fornecidas pelo MPT sobre os trabalhadores infectados por coronavírus.
Resultados preliminares mostram que os municípios em que os matadouros estão localizados e os arredores, que costumam trabalhar em fábricas, são as áreas internas com maior frequência de contaminação com o novo coronavírus.
“Não posso dizer que os matadouros transmitiram a doença a essas regiões, mas pode-se dizer que aceleraram a disseminação”, destaca o pesquisador, que é doutorando em geografia na UFRY (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Isso foi visto na prática pela promotora do MPT Priscilla Schvarcz, do Rio Grande do Sul. O fato de muitos trabalhadores morarem em municípios diferentes daqueles onde trabalham e viajam duas horas por dia em vans compartilhando com colegas facilitou a transferência da comunidade em pequenas cidades do interior.
“No Rio Grande do Sul, os 15 principais municípios em termos de surtos de doenças (casos por 100.000 habitantes) são todas sedes de matadouros ou trabalhadores terceirizados nessas fábricas”, ressalta.
Um problema global
Os surtos parecem exacerbados no Brasil. Eles se tornaram um problema em países como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França e Espanha. Na maioria deles, a força de trabalho imigrante é a principal força de trabalho que impulsiona o setor.
relatório divulgado pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) em 10 de julho, aponta que, entre 16.200 casos registrados em 239 fábricas, 87% foram afetados por trabalhadores de uma minoria racial ou étnica.
O texto destaca as características dos setores propícios à disseminação do Sars-Cov-2: o fato de os trabalhadores estarem muito próximos das faixas de mão única pelas quais a carne passa, para compartilhar o transporte duas vezes e frequentemente viver sob o mesmo teto.
O biólogo Robert Wallace, que estuda a indústria da carne há 25 anos e seu vínculo com o surgimento de novas doenças, acrescenta que muitas empresas do setor não seguiram as recomendações das autoridades de saúde para tentar conter a disseminação da covid-19.
“Muitos aproveitaram a falta de clareza sobre os deveres de cada entidade – se, por exemplo, o município ou o estado precisam revê-los, a fim de se auto-regulamentar”, diz ele.
O autor do livro “Grandes fazendas fazem gripe”, lançado recentemente no Brasil intitulado “Pandemias e Agronegócios: Doenças Infecciosas, Capitalismo e Ciência (Editora Elefante)”, sugere uma reflexão mais ampla sobre a maneira como o mundo produz e consome carne.
Para Wallace, várias características da chamada pecuária industrial favorecem o surgimento e a transmissão de novas doenças.
Por exemplo, a punição geralmente diminui o sistema imunológico dos animais. A alta homogeneidade genética, por sua vez, remove as barreiras que uma maior diversidade de genomas impõe à propagação de um agente infeccioso, enquanto a alta produtividade permite que sempre exista uma grande “nova” população de seres vivos disponíveis para esses patógenos, facilitando o seu desenvolvimento em variantes mais perigosas.
Foi esse ambiente que levou ao fenômeno gripe suína (H1N1) e gripe aviária (H5N1), diz o biólogo, que já foi consultor do CDC e da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e agora faz parte de uma organização independente de cientistas chamada Agroecologia e Economia Rural corpo.
Embora o Sars-Cov-2 tenha sido transmitido aos seres humanos por uma espécie exótica, não por um animal criado especificamente para o abate, o pesquisador afirma que a pandemia da covid-19 também está relacionada à forma como o setor está estruturado,
À medida que o agronegócio prospera nas florestas e contribui para o desmatamento, as populações são “empurradas” para áreas mais remotas e mais expostas a novos vírus e outros patógenos.
Este é o tópico do novo livro de Wallace, “Dead Epidemiologists”, que será publicado em setembro.
“Ele não sabia que ele nasceu”
O haitiano de 48 anos, que morreu em Santa Catarina, morava em Xaxim e trabalhava em uma fábrica no município de Seara, a cerca de 50 km de distância.
Ele foi um dos muitos que se mudam para outras cidades todos os dias para trabalhar, relata o ministro da Saúde Isac Casagrande – acrescentando que o município teve um bom diálogo com o frigorífico da cidade, que tomou medidas preventivas recomendadas pelas autoridades locais.
Xaxim tem a quarta maior incidência de covid-19 no estado, com 2.494 casos por 100.000 habitantes. Em 21 de julho, havia 761 diagnósticos confirmados e 19 óbitos.
Quando adoeceu, o haitiano foi transportado para o município de Xanxerê, a 20 km, para tratamento no Hospital Regional de São Paulo, referência para 14 municípios da região.
“Ele não sabia que havia nascido”, diz o médico Vinícius Chies de Moraes, que tratou o homem enquanto ele estava na UTI.
Tendo dificuldade em se comunicar com o paciente, que estava muito nervoso, Moraes decidiu procurar ajuda de uma recepcionista de hospital também haitiana.
Em uma conversa por telefone, ela explicou a situação e a reação do paciente surpreendeu a equipe.
“Ele não entendeu que nada estava acontecendo, pensou que estávamos tentando machucá-lo. A mudança no estado emocional foi muito significativa a partir do momento em que ele ouviu alguém falar sua língua”.
A pedido de um médico, a recepcionista entrou em contato com a família do homem no Haiti e começou a enviar-lhes boletins diários e aí.
Ela também explicou ao paciente que ele teria que ser submetido a ventilação mecânica, induzida pelo coma, porque 50% de seus pulmões estavam em risco.
Após os pulmões, no entanto, a doença atacou os rins e o fígado. Após uma internação de 27 dias, ele morreu em 12 de junho de síndrome de múltiplos órgãos.
Como foi o caso da covid-19, o corpo foi enviado diretamente ao cemitério municipal de Xaxim e enterrado no mesmo dia.
Com a ajuda da empresa onde os haitianos trabalhavam, o gerente geral de assistência social da cidade, Josete Percio, conseguiu entrar em contato com um primo de seu irmão que também morava em Xaxim. Ela não sabia que o hospital em Xanxerê estava em contato com a família no Haiti.
“Ele confirmou que estava conectado a um intérprete. Todo o processo foi muito difícil”.
Um parente pediu a outros membros da família que lhe dissessem que o homem havia deixado dois filhos no Haiti.