Com novas medidas restritivas em vigor desde segunda-feira – toque de recolher de madrugada e fechamento de cafés, restaurantes e bares – a Bélgica continua batendo recordes, com as autoridades agora relatando mais de 13.000 novos casos positivos para o novo coronavírus nas últimas 24 horas, um novo nacional máximo desde o início da pandemia.
Com dimensão semelhante à de Portugal, a Bélgica, que tem pouco mais de 11 milhões de habitantes, conta desde o início da pandemia mais de 10.500 mortes devidas ao covid-19, número superior ao da vizinha Alemanha (que tem mais de 83 milhões de habitantes ) e quase cinco vezes superior a Portugal.
No total, a Bélgica tem 250.000 casos confirmados de infecção.
Mundialmente, com 92 mortes por 100 mil habitantes, a Bélgica é o segundo país do mundo com a maior taxa de mortalidade por covid-19, atrás apenas do Peru (que responde por 105 mortes por 100 mil habitantes), segundo dados do Norte universidade americano John Hopkins.
Atribuídos no início da pandemia ao fato de que todos os casos suspeitos são contabilizados, os ‘números negros’ apresentados pela Bélgica hoje se devem, segundo vários virologistas, a um enorme relaxamento das pessoas quando as restrições foram levantadas no país e também a uma má gestão política da pandemia, à qual o extravagante sistema político do país não será alheio.
Até que o novo governo belga “saísse” das eleições de maio de 2019 – a Bélgica bateu seu próprio recorde mundial levando quase dois anos para formar um executivo (de uma coalizão de sete partidos) no início deste mês -, a crise de 19 foi administrada por um executivo provisório liderado por Sophie Wilmès com nada menos que nove ministros da saúde.
Além da contestada Ministra da Saúde do Governo Federal, Maggie de Block – que, sem surpresa, não foi reconduzida – as reuniões do covid-19 comitê tiveram até agora outros oito “ministros” da Saúde, representando as diferentes regiões e comunidades linguísticas, com apenas três ministros de Bruxelas na região de Bruxelas.
A fragmentação de competências na Bélgica é tal que, mesmo na capital belga, sede das instituições da UE e da NATO, as medidas podem variar ao atravessar a rua, dado que as 19 comunas da cidade também têm algum grau de autonomia.
Diante das muitas críticas a este governo, uma das primeiras decisões do novo primeiro-ministro, Alexander De Croo, foi nomear um “covido comissário”, mas em um país com a complexidade da Bélgica, até a nova força-tarefa é vistos com suspeita por metade da população, os francófonos – atualmente os mais afetados por covid-19 – já que o chefe do governo, o novo ministro da saúde e o comissário são todos flamengos (norte) e, na Valônia (sul), é temia que a região fosse mais penalizada pelas decisões que serão tomadas.
Atualmente, a grande preocupação na Bélgica é o fato de que os dados mais recentes apontam para uma segunda onda que ainda será devastadora, com o novo ministro da Saúde belga, Frank Vandenbroucke, no domingo, alertando que o país está “realmente muito perto de um ‘tsunami’ ”, ou seja, uma situação em que“ não há mais controle sobre o que está acontecendo ”.
Segundo o responsável, o ‘tsunami’ aproxima-se “perigosamente” da região de Bruxelas (um ‘enclave’ no centro do país já no território da Flandres), e da Valónia, já descrita por muitos como “a nova Lombardia” da segunda onda da pandemia, depois que a região do norte da Itália foi o epicentro da chegada do novo coronavírus ao território europeu.
Os efeitos em Bruxelas já se fazem sentir na actividade das instituições europeias, e esta semana o Parlamento Europeu voltou a realizar uma sessão plenária ‘virtual’ – depois de a assembleia ter realizado sessões presenciais na capital belga no passado meses, como alternativa a Estrasburgo -, enquanto o acesso dos funcionários à Comissão Europeia (cujo presidente está isolado) e ao Conselho é cada vez mais limitado, até porque as novas regras agora em vigor na Bélgica ditam o teletrabalho em todos os casos em que isso é possível.
Numa altura em que as autoridades já recusam exames a quem não apresenta sintomas, face à escassez de kits, a Bélgica registou nos últimos 14 dias a segunda maior taxa média de incidência da Europa, com 932 positivos por 100 mil habitantes (atrás apenas os 1.066 registrados na República Tcheca).
Algumas regiões belgas relatam números ‘astronômicos’, como a região de Bruxelas e Liège (na Valônia), com respectivamente 1.295 e 1.615 infecções por 100 mil habitantes e cerca de um caso positivo para cada quatro exames realizados.
Outro grande temor assumido pelo Ministro da Saúde belga é que haja falta de resposta aos serviços de saúde.
Nas últimas 24 horas, foram registradas 421 internações hospitalares na Bélgica – incluindo a ex-Primeira-Ministra Sophie Wilmès, que deu entrada em terapia intensiva hoje – número que não era alcançado desde 10 de abril, tendo sido registrado na última semana um aumento em internações de 88%.
“Nós poderíamos ter evitado isso. Nunca, mas nunca deveríamos ter chegado a uma situação em que temos de 10.000 a 12.000 novos casos por dia ”, comentou o virologista belga Marc Van Ranst, hoje distinguido pela Real Academia Flamenga de Ciências com um prêmio de carreira.
Segundo o especialista, o principal motivo dessa segunda onda de proporções ainda maiores que a primeira é o fato de as pessoas “baixarem a guarda quando não deveriam”, com a falsa sensação de que o pior já passou.
Já alertando para a probabilidade de queda no número de casos nos próximos dias devido às novas metodologias implantadas, Van Ranst deixa um conselho: “comece a olhar para o número de internações”.
Esperando os efeitos das novas medidas em vigor desde o início desta semana – só será possível por duas semanas analisar seus impactos -, o dilema atual do país é se será necessário voltar ao confinamento total, a cenário que ganha força com os números atuais e que será inevitável se não houver queda forte no curto prazo.
“A situação é grave. Pior do que em 18 de março, quando o confinamento foi decretado ”na Bélgica, reconheceu o primeiro-ministro De Croo esta semana na televisão pública RTL.