Garantir uma dose única da vacina para cada integrante do público-alvo já é uma preocupação do sistema de saúde. Quando a imunização depende da dose, o desafio é ainda maior. Essa adesão – ou frequência de cumprimento dos calendários vacinais – está sendo monitorada de perto pelo estado e, atualmente, duas requerem mais atenção: a tríplice viral e a poliomielite.
Um “termômetro” que verifica a adesão é a taxa de abandono da vacina e só é válido para aquelas administradas em mais de uma dose. O valor é uma porcentagem, e os parâmetros do Programa Nacional de Imunizações (PNI) são usados para estimá-lo. Assim, se a taxa for inferior a 5%, é considerada baixa; se for igual ou superior a 5% mas inferior a 10%, é uma média; e se for igual ou superior a 10% é considerado alto.
No estado do Ceará, dados da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) mostram que a vacina tríplice viral já chamou a atenção em 2018, com expressiva taxa de abandono de 32,83%. O índice continuou caindo no ano seguinte, de 28,20%, e em setembro de 2020 era de 24,31%. Mesmo assim, a preocupação permanece. No caso da vacina contra poliomielite, a tendência de queda observada entre 2018 e 2019 – quando a taxa caiu de 11,99% para 7,42% – foi revertida em 2020. Em setembro, o valor era de 13,56%.
O impacto da pandemia sobre esses índices acaba se tornando inevitável, como explicou a coordenadora de imunização da Sesa, Carmen Osterno. “Quando você ouve toda hora ‘só vai no hospital se tiver dificuldade para respirar’, aquela mãe em casa vai perceber que o serviço de saúde só funciona para esses casos. Então a gente chega atrasada para as consultas. Pré-natal, paciente com diabetes, demora na vacinação porque os pais tinham medo de sair, de levar o filho que estava bem. A gente tem que entender esse lado da população, que ficava preso em casa, com medo, e não por menos ”.
Estratégia
Segundo a pediatra Jocileide Campos, representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) no Ceará, a mensagem sobre o índice de evasão é clara: se esse número de crianças deixar de ser vacinado, é preciso procurá-las. “Isso me dá segurança para essa estratégia de busca a distância, e pode ser feita por um carro de som, dizendo que não foi tomar outra dose. Um agente de saúde pode fazer em casa, saber quem são as crianças. É importante que tenhamos esse número, que saberíamos exatamente onde procurar. Hoje, com esse registro de vacinação com nome de criança, é mais fácil ”, afirma.
Ela acredita que os altos índices refletem o fato de os pais não levarem os filhos às consultas de pediatria, mesmo nas fases iniciais do desenvolvimento infantil. “Quando isso não acontece, eles não recebem orientação de um pediatra ou médico de família, ou de uma enfermeira, ou de profissionais de saúde”, diz ele. O pediatra também reforça a importância de investir em informações para conscientizar a família.
“O trigêmeo viral é uma vacina que protege contra sarampo, rubéola e caxumba. O sarampo pode ser simples para alguns e muito grave para outros, levando a hospitalização, sequelas, morte. Alguns perdem a audição e têm uma reação neurológica. No Ceará, 24% crianças sem essa proteção. Podemos ter outra crise de sarampo. E é uma doença muito contagiosa, o que me preocupa muito ”, alerta Jocileide Campos. Embora o abandono do triplo vírus seja quase duas vezes maior que o da poliomielite, esta ainda é motivo de preocupação no país.
“Hoje temos dois países no mundo (Afeganistão e Paquistão) que ainda têm casos de poliomielite. Se uma pessoa infectada chegar aqui com o vírus e se aproximar de uma dessas crianças vulneráveis sem vacinas, a poliomielite se multiplicará em nosso país. medo ”, enfatiza a pediatra.
Ele lembra que, embora o índice esteja próximo do desejável, se a situação continuar como está, o número de crianças desprotegidas continuará aumentando nos próximos anos. “Quando penso na dificuldade que tivemos para erradicar a poliomielite, doença que mata e torna as pessoas incompetentes, essa situação me atinge muito”, lamenta.
Embora também se destaque com queda de 25% até setembro de 2020, a vacina pentavalente tem um histórico que justifica o índice. “Em 2019, tivemos mais de seis meses com escassez de vacina porque o laboratório produziu um lote de vacinas que não foram aprovadas pelo National Institutes of Health Quality Control (INCQS). Quando não aprovadas, não as distribuímos e aguardamos o laboratório suplementar esta dose “Agora isso está se normalizando, mas não estamos recebendo o suficiente para vacinar todas as doses atrasadas”, detalha Carmem Osterno.
Inversão de script
Com o passar dos meses, durante a pandemia, a Sesa começou a trazer novas ações para reverter um quadro que se agravava para a vacinação no estado.
“Desde julho, começamos a reforçar essa questão de que a vacinação é um serviço fundamental e que a população precisava ir a um posto de saúde para vacinar seus filhos. Os profissionais de saúde começaram a andar de casa em casa, mandando os moradores tomarem a vacina. Especialistas do Programa Saúde da Família ( O PSF) também passou a buscar ausentes, senão teríamos perdido um ano ”, estima o coordenador de imunização.
Também enfatiza o papel de uma dose adicional para a vacina contra a poliomielite, que é dada por via oral ou, como é popularmente conhecido, para uma “gota”. “É dado depois de um ano. Aí a gente faz uma campanha e recupera aquelas crianças que não foram vacinadas na idade certa”, ressalta.
No caso da comerciante Gilmare Freire, 32, mãe da pequena Mariana, a oportunidade não foi perdida. Há três semanas, ela levou uma menina de três anos para receber o colírio, seguindo orientações já recebidas de profissionais de saúde. “Sempre tive interesse em tomar no dia certo da vacina, nunca deixo ela se atrasar porque é melhor, né? Para ela não sofrer. Se atrasar, acaba tendo que tomar no mesmo dia”, diz.
Gilmara revela que foi questionada antes de levar a filha para a vacinação em meio a uma pandemia, mas, segundo ela, o compromisso falou mais alto. “Fomos muito cedo, quase ninguém apareceu. Conseguimos manter distância, vacinar e voltar para casa”, conta.
A comerciante mora no bairro de Cajazeiras e relata que outras mães da vizinhança também compartilhavam do medo, mas decidiram levar seus filhos para a vacinação nas últimas campanhas. “É tudo para proteger as crianças. Por isso temos que obedecê-las. Vemos elas sofrendo de injeções, mas é melhor do que deixar acontecer algo que não é mais possível”, pensa.
Se mais pais e mães fossem seguidos, o exemplo dado por Gilmar seria um cenário ideal para a imunização, que, segundo Carme Ostern, o maior problema é o cumprimento do calendário. “A falta de uma vacina pentavalente foi temporária e está começando a se regular. Mas nas outras temos uma questão de presença”.
A sensação de “falsa segurança”, tanto entre a população em geral quanto entre os profissionais de saúde, Jocileide Campos também encara com medo. “Aqui no Ceará, desde que tivemos um surto de sarampo há três ou quatro anos, muitas crianças foram vacinadas, tanto que controlamos o surto na época. Então eu acredito que muita gente, inclusive os trabalhadores de saúde, acha que não vamos ter mais sarampo “Mas gostaria que você se lembrasse das crianças que nasceram depois disso. Não são as mesmas que já estão protegidas, são crianças vulneráveis que vão adoecer”, avisa.