Uma das memórias mais antigas do pedagogo de arte e musicoterapeuta Renato Gama é a de seu pai percorrendo as ruas do bairro onde a família se instalou, a Vila Nhocuné, na periferia da zona leste de São Paulo, cumprimentando todos os negros que cruzavam a estrada.
“Eu não entendi isso. Perguntei se ele conhecia todas essas pessoas e ele sempre disse, ‘Eu não o conheço, mas ele é meu amigo’. Essa ‘tecnologia’ do afeto leva muito tempo para entender.”
Um homem negro, pai de três filhos, Gamma, agora com 45 anos, está usando a tecnologia para sobreviver em meio a uma pandemia que já causou mais 100.000 mortos no paísAfinal, com o isolamento social, a liderança das autoridades sanitárias para evitar aglomerações e a baixa afinidade do atual governo brasiliense, o setor de artes passou a ser um dos grandes afetados pela crise atual.
Mas ele ressalta: “Meus ancestrais trouxeram tecnologias de sobrevivência da África – eles vieram de um navio negreiro, pernas amarradas e bolas de ferro sob os pés, e muitos morreram de banzo ou em casa. Eles cultivaram, estabeleceram afeto e foram essas tecnologias que nos deram a oportunidade de enfrentar essa pandemia. É por isso que eu entendo muito mais o gesto do meu pai de acolher os negros do bairro ”.
Em uma entrevista com Viés, Gamma afirma que a herança cultural de resistência ao desastre, ainda mais como artista negro e periférico, foi um de seus movimentos para superar as dificuldades do momento, utilizando ferramentas de divulgação de sua própria obra, como as redes sociais.
“Agora uso as redes sociais, que costumo chamar de quintal onde chamo mais próximo. Atendo-as como musicoterapeuta. Por exemplo, faço minha vida no Instagram e no Facebook. É aquela coisa: nós inventamos a nós mesmos, mas para nós, negros, isso não é novidade – então procuro me inspirar nessa sobrevivência do século, adotada por negros e negros, para me manter vivo, olhar para frente e trazer meus filhos para esse movimento: ‘é o momento, mas vamos vencer’ ‘.
Gamma também compõe, produz e dirige peças de teatro. Como musicoterapeuta, é sócio do coletivo Sá Menina e do estúdio Pele Preta, que afirmam a cultura africana no Brasil com a arte, especialmente na periferia. Tornou-se arte-educador depois que, ainda jovem, teve que abandonar o curso de literatura da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. As memórias permanecem: “Eu e o colega éramos os únicos negros naquele ambiente”, lembra ele.
Pai de três filhos, ele luta contra a “masculinidade tóxica”
Os filhos da artista têm 25, 9 e 4 anos. O primogênito surgiu quando Gama, parente de um músico da periferia, estava saindo da adolescência.
“Continuo aprendendo e admito que é preciso muita humildade para criar um filho: é um processo constante de nos desconstruir e nos compreender como homens, porque nossa masculinidade ainda está fortemente associada a um lugar tóxico e sexista”, diz ele.
“Procuro sempre enfatizar aos meus filhos que eles têm o direito de voar, a liberdade de escolha, mas sempre cuidando para que eles tenham o direito de usar a mobilidade, não pela força, mas pela sensibilidade. Isso nunca será uma fraqueza.”
O “poder da música” na AACD estimulou o estudo da musicoterapia
Gamma começou a praticar musicoterapia em 2014, durante o curso da área. A motivação chegou pouco antes disso, quando ele teve contato com crianças da AACD e ficou emocionado ao vê-las cantar o refrão de uma música que ele acabara de apresentar em uma peça para crianças.
Acabei de apresentar um artigo sobre um boi voador voando sobre Cabo Verde para o Brasil, “Boi Beleza”. Terminei e foi incrível ver o impacto disso nas crianças que, embora com dificuldade de se mover, até mesmo falar, cantam a música da peça. “O poder da música? Foi aí que decidi estudar musicoterapia”, relata ela.
Segundo o artista, o Sesc o contratou para fazer musicoterapia para seus funcionários – por isso, diz ele, “eles se lembraram de mim na pandemia, porque agora estenderam esse projeto a todos, com inscrição gratuita”. O projeto oferecido pela instituição é denominado “Musicoterapia e Improvisação Musical com Objetos”.
Público ao vivo: mais diversificado
Com os shows no Instagram e no Facebook, o perfil do público que o segue também mudou.
“Antes dos 19 anos fazia peças no Sesci e lugares na Prefeitura e atingia um determinado público. Agora eu alcanço pessoas de 16 a 70 anos, por exemplo, eu comento, me comunico na mesma vida. Mostra que a música é completa e chega à plenitude das pessoas – e mesmo que a arte nunca tenha sido o centro das atenções, ainda é o instrumento básico para retratar a diversidade humana ”, defende.
E há esperança para o papel social da arte que, aposta a musicoterapeuta, trará um pouco de alento ao cenário pós-pandêmico que, esperamos, um dia venha a surgir.
“Entre os nossos dizemos que ‘quem nos protege não dorme’ – aquilo que está além da matéria, nossos orixás, nossos encantados, nos protegem. Isso nos dá força para enfrentar e seguir esse caminho. E o mundo já está mostrando isso, sem ninguém sobrevive à arte: a vida é árida e dura, e qualquer coisa, nesse estado, se quebra. Continuaremos a florescer, a lutar, sempre nessa direção. ”